sexta-feira, 4 de julho de 2008

Sobre o lóbulo frontal

Naquela manhã fria de agosto o barulho incessante dos ônibus que corriam rumo ao Terminal Tietê a acordou, ainda teve alguns poucos minutos de semi-consciência até o vira-lata recém adotado pela família entrar no quarto para despertá-la de vez. Aquele incômodo vindo das quatro cervejas (ou seriam cinco?) com intervalos regulares para doses de tequila atacava impiedosamente seu estômago e o lóbulo frontal do seu cérebro, logo ele que havia sido apresentado a ela dois dias antes na aula de anatomia do curso de psicologia, claro, não o dela, mas o de algum indigente que morreu caído em alguma sarjeta vítima de um ataque cardíaco fulminante.

Ao se olhar no espelho a surpresa frente a tamanha desorganização capilar, o que a fez recordar dos incessantes movimentos com a cabeça ao som de David Bowie, mergulhada na fumaça densa de cigarros e outros cigarros. Aquele frio intenso que sentia contrastava com o calor intenso do seu quarto, proveniente de um aparelho fajuto de aquecimento comprado pela sua mãe de algum vendedor por telefone. Novamente à sua memória a aula de anatomia e a afirmação do professor de que o cérebro requer 25% de todo o sangue bombeado pelo coração, talvez essa fosse a causa de tanto frio.

Precisava se arrumar, pegar dois ônibus e metrô para, depois de duas horas, começar sua rotina de entrevistas no departamento de recursos humanos de uma multinacional. “Agora sim minha filha, você tomou jeito. Trabalhando em um emprego com carteira assinada e com perspectiva de algum dia se tornar chefe do departamento. Estou orgulhosa!” dizia a mãe todos os domingos durante a macarronada em família. Família composta por meia dúzia de almas. Dona Dirce, a mãe, tivera apenas dois irmãos, um dos quais morreu ainda criança atropelado por uma carroça guiada por um carroceiro embriagado. O outro, mais velho, sofria do mal de Alzheimer e se arrastava da cama para a mesa e vice-versa. Estava sentado ao seu lado, com um babador sobre o peito e uma colher de plástico daquelas de festas infantis na mão. Os pais de Dona Dirce morreram há mais de dez anos, no sertão de Pernambuco, logo, estavam ali somente em espírito, como ela mesma gostava de acreditar. O único primo ainda vivo estava sentado na ponta da mesa e todo domingo repetia a mesma piada sem graça de que pagaria a conta, apesar de dever à prima mais de dois mil reais, emprestados com o intuito de que ele comprasse uma barraca na feira, mas o mesmo preferiu naquele momento dar entrada em um Opala Diplomata 1988, o mais novo de São Paulo, dizia ele, e continuar desempregado até a última parcela do seu seguro-desemprego. Haviam ainda dois outros familiares, um tio recém chegado à cidade e uma tia, ex-freira que deixou de lado o hábito para se dedicar à política. Já conseguira se tornar presidente da Associação de Moradores do seu bairro e queria se candidatar a vereadora nas próximas eleições.

Essa era a família de Dona Dirce, ou pelo menos o que havia sobrado dela. Uma família disfuncional “mas nos dias de hoje, qual família não é?” perguntava à filha sentada à mesa do café da manhã, tentando se concentrar e lembrar do nome do rapaz com quem havia se enroscado no banco de trás do carro na noite passada. Só lembrava do perfume, amadeirado, pouco doce mas muito enjoativo. Talvez fosse ele, o perfume, não o rapaz, o responsável pelo incômodo no lóbulo frontal.

Fazia uma varredura pelo córtex pré-frontal - ou seria entorrinal? - em busca de qualquer informação que levasse a uma identificação positiva do sujeito. Mas a sensação de agulhas de crochê costurando seu cérebro atrapalhava a concentração, sensação exponencialmente agravada pelo som agudo do interfone que tocou por infinitos dois segundos a menos de um metro do seu sistema auditivo.

É uma amiga sua do trabalho. Passou pra te dar uma carona – disse a mãe.

Não se lembrava de ter combinado uma carona para o trabalho. Até porque só tinha uma amiga que fazia algumas matérias na mesma classe mas que morava do outro lado da cidade e não tinha mais do que passes de ônibus e cartão para o metrô.

“Melhor do que ficar espremida feito sardinha em uma lata que a prefeitura prefere chamar de ônibus.” pensou ela enquanto descia as escadas, ainda tentando lembrar do rapaz da noite passada.

À frente da portaria do edifício onde morava só havia um carro parado, logo, pensou que devia ser sua carona, apesar de nunca ter visto, ou mesmo entrado em um carro como aquele. Grande, luxuoso, preto, com cara de importado.

“Bem melhor que ônibus lotado.” Foi o que veio à sua cabeça enquanto abria a porta e sentava-se nos bancos de couro em duas cores.

Estranhou a pessoa sentada ao volante, mas depois de uma rápida vasculhada pelo córtex pré-frontal, ou entorrinal, tanto faz, veio à sua mente a lembrança da figura da Diretora Geral de Pessoas da empresa, ao seu olfato o perfume amadeirado, pouco doce mas muito enjoativo e às suas mãos a proposta para chefe do departamento de contratações da empresa.

Pronto, o sonho da mãe estava realizado. E se lembrou da letra da música de Bowie da noite passada “We can be heroes just for one day. We can be us just for one day.”, o que melhorou o incômodo no lóbulo frontal, mas afetou gravemente o sistema límbico, responsável pelas emoções e auto-controle, conforme havia explicado seu professor dois dias antes.